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.:: A Dama da Ópera PDF Print E-mail
Por Helena Miranda e Cristina Cota
Asta-Rose Alcaide "Eu sempre costumo dizer: foi aquela história clássica entre a bailarina e o tenor. E funcionou logo. Foi óbvio, óbvio."

Asta-Rose Alcaide, ex-bailarina, viúva do grande tenor português Tomás Alcaide, é actualmente directora artística da Associação Ópera Brasília, que fundou em 1977, após o seu regresso ao Brasil. Situada num edifício desenhado pelo arquitecto Óscar Niemeyer, a associação apresenta temporadas de ópera e recitais, dando oportunidade a um público muito alargado de conhecer este género musical.

Ao contrário do marido – mas certamente com a ajuda dos seus ensinamentos – conseguiu ter o apoio do seu país de origem para difundir o teatro lírico. Visitou recentemente Portugal, no âmbito da exposição de Tomás Alcaide, a decorrer no Museu da Música até dia 2 de Janeiro. Não quisemos deixá-la ir embora sem que nos concedesse uma entrevista.

Como conheceu Tomás Alcaide?
Conheci-o no Teatro Municipal de S. Paulo, onde eu fazia parte do corpo de baile. Na altura queria ser bailarina ou especialista em literatura anglo-saxónica, era isso que me interessava. Tomás Alcaide veio para o Brasil com um grupo de grandes cantores líricos, fugido da guerra, porque as condições de trabalho na Europa se tinham tornado muito difíceis ou quase impossíveis. Tanto em S. Paulo como no Rio era costume haver temporadas líricas subsidiadas pelas respectivas embaixadas: ou seja, a temporada italiana era subsidiada pela embaixada de Itália, na qual Tomás Alcaide estava inserido. Não era uma companhia formada, mas havia um empresário que juntou todos os grandes cantores (Tito Squipa, Beniamino Gigli…) que vieram nessa altura. Em S. Paulo estava programado o ‘Rigoletto’ com Tomás Alcaide e no primeiro acto dessa ópera há uma pequena dança que era interpretada pelo nosso grupo de bailado. Logo no primeiro ensaio conheci Tomás Alcaide através do ‘Maitre de Ballet’ que tinha também fugido no mesmo barco (Vaslav Veltchek, um grande coreógrafo e professor de dança). E foi ele que me apresentou ao meu marido.

Já tinha participado em outras óperas?
Não, eu era bastante nova. Não tinha tido tempo. E como disse, eu queria era ballet, nem sabia grande coisa de ópera. Sabia uma ou outra ária, mas estava completamente absorvida pelo ballet. E realmente, para mim, foi uma grande revelação, porque através desse conhecimento com Tomás Alcaide eu entrei no mundo da ópera. Estava contratada para o ano inteiro e ele depois seguiu para a Temporada do Rio e cantou também em outras cidades do Brasil. Eu sempre costumo dizer: foi aquela história clássica entre a bailarina e o tenor. E funcionou logo. Foi óbvio, óbvio (risos). Ele era um homem muito bonito, muito charmoso, muito educado e muito culto. E eu vinha lá da província de Santa Catarina, que era um negócio muito diferente. Eu não tinha ainda tido conhecimento com alguém com qualidades do género. E por isso é que digo que a coisa funcionou logo. Tão depressa, que nos conhecemos em Agosto e ele já queria casar antes do fim do ano. Só que, entretanto, devido ao falecimento do pai em Portugal, pediu-me para esperar. Durante esse ano, ele deu muitos concertos no sul, em Curitiba, Porto Alegre, Joinville, S. Paulo, Rio, na Argentina, inclusive, e também foi convidado a fazer um programa de rádio que tinha ligação com Portugal, onde ele cantava também. E casámos em Agosto do ano seguinte. Ao início falávamos em francês, porque eu nunca tinha falado com portugueses. Ele falava português evidentemente bem, mas eu não conhecia muitos termos. Depois fui-me habituando, claro, e hoje acho que consigo falar português de Portugal (risos). Foi assim.

O que de essencial lhe ensinou Tomás Alcaide?
Bom, é muito fácil: tudo. Eu era uma bobinha de Joinville e ainda estava abrindo os olhos para o mundo através da dança. E Tomás Alcaide era uma pessoa com todo o prestígio que já tinha alcançado na Europa e uma educação primorosa do Colégio Militar (que era uma coisa que ele sempre mencionava). Falava várias línguas e estava em posição de alcançar um dos cinco maiores lugares de tenor no mundo, se não tivesse havido a guerra. Aprendi com ele a gostar de ópera mas, muito mais do que isso: além de cantor, ele sabia desenhar figurinos e cenários, sabia ensinar ópera. E me deu várias aulas de canto. Eu tinha uma voz pequena, de soprano. O mais importante foi a parte técnica que aprendi com ele: não era só vestir uma roupa bonitinha e ir para o palco cantar. Era aprender como se interpreta, como se estuda um papel de ópera. Tudo isso me ensinou.

E relativamente ao canto?
Primeiro a técnica: ‘smorzando’, altos, médios e extensão da voz. Depois o resto: estudar muito bem os papéis, saber a história, saber da cultura da língua em que se canta (no caso dele em francês e italiano). Não é só cantar ‘La Donna è Mobile’. Tem que se saber porque é que ela é ‘mobile’, quem mandou ela ser mobile e como se exprime isso (afinal não era, depois foi engano) (risos). Não é assim tão fácil, um papel de ópera. Se o cantor já tiver muita prática e se tiver de substituir outro que esteja doente, por exemplo, é possível estudar o papel numa semana, mas precisa de ter já um grande ‘background’ cultural. E a técnica adequada. Um cantor de ópera pode ser castigado muito injustamente só por causa de um resfreado, de uma gripe ou de uma sinusite. E não pode tomar coisas muito geladas, nem pode apanhar ar frio. Também tem de ter muito cuidado com a dieta. O meu marido quando chegou a Itália aprendeu a cozinhar, porque um cantor de ópera não pode comer de tudo. E não pode beber nem fumar, ao contrário do que acontece com os cantores de música ‘pop’ (uma vez que alguns até são conhecidos por isso). A ópera é de tal maneira exigente que um cantor lírico tem de estar sempre muito bem fisicamente (e um tenor ainda mais do que os barítonos e os baixos, dado que os segundos têm uma voz mais grossa e as irregularidades não se notam tanto).

Qual era a rotina de Tomás Alcaide quando estava a preparar uma personagem?
Mesmo depois de aposentado, continuou com a mesma rotina. Tomás Alcaide, tal como qualquer cantor de ópera, não saía da cama a cantar logo bem. Normalmente, não se fazem ensaios muito cedo, porque a voz tem de acordar. É à tarde e à noite que rende mais. Tomás Alcaide tomava o seu café da manhã e começava a estudar. Ou em casa ou com um pianista. Normalmente com um pianista, a repassar. E depois, com a lição sabida, ia para as mãos do maestro. Não ainda com a orquestra toda, mas normalmente com o pianista e o maestro. O maestro corrigia algumas coisas (mais depressa, mais devagar, uma expressão mais forte, menos forte). Estes reparos são feitos, em geral, pelo maestro e pelos colegas mais imediatos (normalmente o soprano, o barítono, o tenor e o baixo). Mas só depois disso é que tocava com a orquestra. Os primeiros ensaios com a orquestra eram sempre detalhados, porque é a altura em que entra também o director de cena. Um cantor de ópera não é um cantor que faz um concerto. Ele tem um personagem. E esse personagem tem de estar presente. E essa parte é com o encenador. E tem de ter roupa, vestidos, figurinos. No tempo de Tomás Alcaide, os grandes cantores tinham, cada um deles, o seu guarda-roupa. Que não tinha nada que ver, às vezes, com os cenários. Podia ser completamente diferente. Nessa altura não se tinha ainda a concepção geral. Hoje em dia não se faz isso. Quando se monta uma ópera (eu já montei dezoito), tem de estar tudo coerente: o cenário, os figurinos e pequenos detalhes de representação (cantar o Rodolfo de ‘La Bohème’ é diferente de cantar ‘Werther’). Tudo isso tem de ser estudado e repassado até se chegar aos ensaios com a orquestra. Depois do ensaio geral já não há nada a fazer: ou está bem ou não está. O público é que resolve se valeu a pena o trabalho. E o público pode ser muito cruel, mas é ele que decide, sem margem para erro. É isso que Tomás Alcaide dizia sempre. Claro que é muito raro haver uma pateada em ópera, é preciso ser muito ruim. E alguém muito ruim não chega aos palcos de verdade. Até porque os directores do teatro exigem que esteja tudo pronto antes da estreia de qualquer espectáculo. Há uma grande diferença entre amadores e profissionais na ópera, por um bom desempenho requerer tantas coisas. E cada vez que um cantor lírico se apresenta, ele joga a carreira.

Como resolveu Tomás Alcaide ir para Itália, quando era jovem?
O meu marido contou-me que aqui em Portugal, enquanto cursava medicina, já cantarolava serenatas. Por causa de um professor muito ruim que apanhou em Lisboa, resolveu ir estudar para Coimbra. Em Coimbra há aquelas cantorias todas dos estudantes, e ele entrou em contacto com um desses grupos. Imediatamente perceberam que Tomás tinha uma voz muito boa. Então, desde logo, começou a cantar os solos. Depois regressou a Lisboa e começou a ter aulas de canto a sério, com Chico Redondo, que era um tenor fantástico e um homem muito gordo. Chico Redondo ensinou-lhe muita técnica e Tomás Alcaide, que já sabia línguas, dedicou-se profundamente ao estudo. Nessa época Portugal estava em constantes revoluções e, embora o pai do meu marido fosse capitão, ele detestava política. Por isso, na primeira oportunidade, – arranjando patrocinadores, já que os seus pais não tinham muitas possibilidades – foi para Itália. Mais tarde, ele devolveu o dinheiro às pessoas que o ajudaram.
Quando os jovens como Tomás Alcaide chegavam a Itália para cantar, todos queriam conquistar o mundo. Ele chegou a Milão sozinho, também determinado a conquistar o país. Teve muita sorte, porque foi cair nas mãos de um professor de canto muito bom, a quem posteriormente teceu grandes elogios (Fernando Ferrara). Esse professor não só desenvolveu muito a parte técnica de Tomás Alcaide, como também o seu repertório. Além disso, apresentou-o a gente ligada ao meio (agentes, etc). Sete ou oito meses depois de ter chegado, o meu marido estreou-se. Começou muito cedo a cantar profissionalmente, porque tinha grande facilidade nos agudos. Com a ajuda do professor, foi ver quais as óperas mais cantadas e quantos as cantavam. Reparou então que havia algumas óperas pouco cantadas, ou porque necessitavam de vozes mais invulgares, ou porque ninguém se interessava por elas, como, por exemplo, o ‘Pescador de Pérolas’. Tomás Alcaide especializou-se nestas óperas e foi assim que escolheu aquele que seria o seu repertório. Curiosamente, no ‘Pescador de Pérolas’, o único que não é pescador é o tenor, que é caçador. A ópera resultou muito bem, devido à voz de tenor específica que ele tinha. Como era um homem bonito, com boa figura, punha-se no palco só com uma pele de tigre (enquanto os outros todos estavam vestidos) (risos) e fazia o maior sucesso. Este tipo de representação era uma novidade para aquele tempo em que tinham começado os filmes do ‘Tarzan’, do Johnny Weissmuller. O meu marido maquilhava muito bem as pernas, era todo chique, elegantíssimo. Aliado a este sucesso estava também o facto de no terceiro acto existir uma ária para tenor que normalmente não era cantada, por ser muito difícil. E ele estudou-a até conseguir cantá-la. Especializou-se, portanto, em óperas menos cantadas, porque as suas qualidades de voz o permitiam. Foi uma forma muito inteligente de entrar no mercado em Itália. Tinha apenas 24 anos e um repertório de 47 óperas (algumas em duas línguas).

Quais eram os outros tenores que rivalizavam com ele?
No apogeu da sua carreira eram também grandes tenores Tito Schippa e Beniamino Gigli. Os grandes cantores líricos eram todos italianos. Na altura, eram vistos como estrelas, muito mais do que agora. Mas quem decidia os papéis eram as audições e os empresários, e a escolha era feita principalmente com base no repertório de cada um. Não posso dizer que houvesse rivalidade. Um tenor não canta todas as óperas. Um soprano também não. Cada cantor tem características especiais que o fazem ser mais apropriado para determinadas óperas do que para outras.

Como reagia Tomás Alcaide às audições?
Ele sempre me disse: “As audições são terríveis”. Vai-se para o palco só com um pianista e na sala vazia está o director do teatro. Imagina que clima: fica-se nervoso, preocupado…ele sempre me disse que raramente foi contratado pelas audições. Normalmente contratavam-no porque o tinham visto a actuar.

Fale-nos da carreira cinematográfica do seu marido.
Ele fez filmes em Itália e em Inglaterra e fez uma versão do ‘Bocage’ em Portugal (de 1936). Até foi convidado para Hollywood e chegou a assinar um contrato, mas depois desistiu. Disse que tinha de cantar para um público e que esse negócio de cantar para máquinas não dava para ele.
Foi uma moda que passou, a de contratar cantores de ópera para filmes.

Como é que o público pode entender ópera, nos dias de hoje?
Antes de mais nada, e isto é básico, o público tem de compreender o que está a acontecer. Essa ideia de se pôr uma ópera da qual o público não tem ideia nenhuma, ou uma ópera em chinês ou russo e de repente, todos terem de gostar, não existe. O público tem, antes de mais, de saber a historinha. Por exemplo, em Brasília distribuo sempre o elenco e o resumo da ópera para toda a gente poder ler antes do espectáculo. Depois, explico mais um bocadinho o que vai acontecer e destaco um ou outro ponto, sempre partindo do princípio que a pessoa que me está a ouvir não tem grandes conhecimentos. Isso funciona muito bem. O grande perigo é o público não saber o que está acontecendo. Algumas pessoas que frequentam a Associação dizem-me que agora, quando vão a Buenos Aires, a Nova Iorque ou à Europa, já marcam os ingressos na ópera com antecedência. E muitos compram ópera gravada e ouvem-na em casa. Isso é uma coisa boa. O mais importante na ópera é o hábito. Você não vai gostar ouvindo uma vez: é impossível um jovem ir uma vez à ópera e ficar logo louco por aquilo (risos). Tem de haver uma continuidade, ano após ano, seguindo temporadas. Por isso a ópera deve ser acessível. Em Brasília normalmente é de graça. Podemos fazer isso porque a nossa orquestra é do Estado e não temos de pagar aos músicos separadamente. O nosso público, com este sistema é, em média, muito jovem. As pessoas de mais idade não vêm tanto. Alguns chegam muito à vontade, de chinelos, coçando o dedo do pé, mas gostam e voltam e se interessam. E, entretanto, às vezes também aprendem a comportar-se (risos). Temos jovens que nos acompanham há anos. E de vez em quando eu encontro-me com pessoas que entretanto cresceram e já têm famílias – pois fazemos isto desde 78 – e elas me dizem que continuaram a ir à ópera e agora levam os filhos.
Isso é que é importante. Mas dá muito trabalho. Claro que há desilusões, mas normalmente o teatro enche. Nós também usamos legendas, que são muito úteis. Não acredito que se possa gostar do que não se entende, por mais bonita que seja a voz. E as pessoas que transmitem, também têm de gostar muito do que fazem, senão não há comunicação.

Há um certo tom popular na sua maneira de fazer as coisas, que vai um pouco contra a ideia convencional de associar ópera a uma elite cultural.
Hoje em dia eu sou chamada de a “Dama da Ópera”, em Brasília. Às vezes estou numa loja ou apanho um táxi e as pessoas dizem-me: a senhora é a “Dama da Ópera”(risos). Então não é bonito, isso? Eu acho fantástico. Vocês aqui em Portugal estão numa outra situação, porque lá se começou do nada. E aqui, muitas vezes, como há mais tradição e a mãe, o pai e o avô já iam à ópera, depreende-se que a ópera é para um público reduzido e esse público tem de perceber. E isso nem sempre é verdade.
Mas temos muita concorrência. Por exemplo, a música popular, que não tem a finalidade que tem a ópera. Claro que há canções bonitas, isso não se discute. Mas a maior parte dessa música pop, quando é muito barulhenta, faz mal aos ouvidos. Toda a gente sabe, já está mais que provado. Em segundo lugar é feita com o sentido de absolutamente embrutecer as pessoas. Aqueles grandes concertos em que o ritmo e a música são sempre iguais são sistemas de embrutecimento das pessoas. Na ópera você tem de compreender, de seguir a história, de pensar. Nesses concertos não: é simplesmente aquele papaapapapapaapapapapa (risos).

Mas…
Não, isso embrutece. Isso não cria nenhuma inteligência em ninguém, não dá nada. Não sou contra, acho que há grandes intérpretes de música pop (no Brasil também), mas há também alguma dessa música que constitui um grande perigo para o ouvido e que não faz pensar: quem é o ‘Duque de Mântua’, donde é que vinha, como é que era? Este tipo de perguntas não existem na música pop, só na ópera.

Quando Tomás Alcaide regressou a Portugal, depois da guerra, sentiu que o problema da ópera ainda não estava resolvido no seu país. Quais eram as propostas que ele tinha para apresentar?
Tomás Alcaide não se sentiu bem no Brasil. Ele era fruto de um mundo diferente, de um mundo Europeu que nessa altura já tinha falido, já não existia. Representava um mundo anterior à guerra de 39 e não conseguia conjugar, com a sua mentalidade, a superficialidade que havia no Brasil em relação a certos assuntos: havia grandes compositores, claro, mas se alguém tinha uma voz bonita, no dia seguinte ia logo para a rádio e era uma super-estrela. Isso não se dava tanto na Europa, e Tomás Alcaide não percebia este tipo de fenómeno. Então quis sempre regressar a Portugal, porque tinha consciência que era um dos países europeus onde havia ainda muito trabalho para fazer. Voltou com toda a boa vontade e entusiasmo e com o intuito de, com a sua experiência, criar um ambiente propício não só ao público de ópera, mas principalmente aos jovens cantores. Só que, quando chegou, encontrou uma barreira completa de pessoas que não o compreendiam ou que tinham inveja. Pouco tempo antes, Tomás Alcaide tinha tido um caso em tribunal contra ele, que ganhou. Esse processo consistia na perfilhação de uma criança que o meu marido sempre disse que não era dele. Veio-se a descobrir que o meu marido tinha razão, mas a imprensa já tinha destruído um pouco a sua imagem junto do público. Isso fez-lhe muito mal, também. E foi uma coisa que talvez tenha dificultado as relações com as pessoas ligadas à ópera. Ele queria criar uma espécie de escola profissional de ópera de alto nível (não inserida no Conservatório) e chegou a ter reuniões com o Pedro de Freitas Branco e com mais pessoas, que tinham esse interesse comum. Quem estava mais dentro do mundo da ópera mostrou-se muito avesso a esse projecto. E foi uma pena, Portugal ficou a perder. Uma das razões que apontavam era a de que Tomás Alcaide não tinha feito o Conservatório. Era uma razão absolutamente idiota, naquele tempo nenhum dos grandes tinha feito o Conservatório. Mas isso prejudicou-o muito e causou-lhe uma depressão. Ele me dizia: “Eu sei que posso”. Mas não o deixavam. Desenhava cenários, figurinos, sabia muito de história, falava várias línguas e além de ser um homem muito culto, tinha um desejo muito grande de ensinar. Mas não encontrou ambiente nem ajuda aqui.
A escola que Tomás Alcaide tinha em mente não era para se aprender a cantar. As pessoas já tinham de saber: era sobretudo para se ensinar interpretação e dicção. E queria fazê-lo com o Teatro S. Carlos. Mas por questões de inveja, penso, nada se concretizou. Nós fizemos isso muitos anos depois com o Doutor Serra Formigal, no Teatro da Trindade, sempre nos meses de Verão e deu resultado. Fazíamos seis óperas por temporada. Quando apresentávamos a primeira, a segunda já estava a ser ensaiada. Isso fazia com que uma quantidade de músicos e cantores entrasse num ritmo muito bom. Foi uma escola para muitos, mas depois acabou. Os bilhetes eram baratos. E os chamados “trabalhadores” que não conheciam ópera, passaram a conhecer.

Ele não quis fundar a escola de canto noutro país?
Não, queria aqui. E podia ter ido para outro país qualquer, que o aceitavam. Teve ofertas no Chile e nos Estados Unidos, por exemplo.

Qual era a personagem que gostava mais de ver o seu marido interpretar?
Era fora de série a fazer o ‘Werther’. Muita gente preferia o ‘Rigoletto’, porque realmente ele cantava como poucos a célebre ária ‘La Donna è Mobile’. Mas a história do ‘Werther’ era mais interessante para mim. Era romântica e eu também sou romântica. E dá mais oportunidade de representar. Para o ‘Rigoletto’ bastava ir muito bem vestido – e ele ia sempre! – com aquele ar de debochado que ele tão bem sabia fazer, e cantar aquilo muito bem (risos). O ‘Werther’ era outra coisa.

Ele gostava muito de intepretar a ‘Manon’…
Muito. Ele gostava de interpretar papéis de tenor, de galã, evidentemente, mas que não fossem só de sedução. Gostava sobretudo das óperas em que a necessidade de aprofundar a personagem era maior. E isso acontecia muito na ‘Manon’. E gostava principalmente de românticos. Chegou inclusive a cantar a ‘Carmen’, mas essa ópera não era para a voz dele.

Qual foi o maior imprevisto que aconteceu ao seu marido em cena?
No ‘Werther’ uma vez teve de desmanchar o cenário com um pontapé para poder sair por uma porta que não queria abrir. No ‘Fausto’, as jóias da ‘Margarida’ caíram-lhe dentro de um poço. E ele tinha de mostrar as jóias à personagem feminina. Ela teve de cantar sem as jóias. Tomás Alcaide tinha um livro só com piadas de ópera.

Tomás Alcaide tinha superstições?
Sim, tinha várias, tinha. Um cantor de ópera quando chega ao palco e vê um prego no chão, nunca, jamais!, deve levantar o prego. E tinha também um amuleto que trazia sempre ao pescoço (risos).

Como gostaria que o seu marido fosse recordado?
Pela qualidade da sua voz, pela técnica excepcional que ele tinha herdado de Tito Squipa e pela elegância e consistência na maneira de proceder no palco. E também porque ele se inteirava muito e entrava muito no papel. Outro aspecto de Tomás Alcaide é que ele era muito português. Tanto assim, que recusou a nacionalidade italiana dizendo que tinha nascido português e que queria morrer português. Com isso perdeu extraordinárias oportunidades em Itália. Era uma pessoa muito íntegra, muito certa. Não era mesquinho, não era pequenino. Isso eu gostaria que lembrassem.